Transexuais-Troca de Nome-Independe de Cirurgia

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.

 

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.

 

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Opostos embargos de declaração pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, os quais foram rejeitados na origem.

 

Irresignado, o parquet estadual interpõe recurso especial, com amparo na alínea "a" do permissivo constitucional, apontando negativa de vigência dos artigos 55, parágrafo único, e 109 da Lei 6.015/73.

Assinala que, a despeito de qualquer procedimento cirúrgico, o sexo biológico permanece inalterado, devendo avançar a jurisprudência para admitir a alteração do registro sem tal condicionamento.

Conclui que "a melhor interpretação ao artigo 54, § 2º, da Lei 6.015/73 seria a compreensão de que se está a tratar de sexo jurídico (ou do gênero), assim considerado aquele com o qual a pessoa se apresenta e se identifica socialmente, o que nem sempre mantém correspondência com o sexo biológico, abrindo-se espaço para sua retificação pela via prevista no artigo 109 da Lei de Registros Públicos" .

O prazo para o oferecimento de contrarrazões decorreu in albis.

O recurso recebeu crivo positivo de admissibilidade na origem.

 

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É o relatório.


RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.


1. À luz do disposto nos artigos 55, 57 e 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público.


2. Nessa perspectiva, observada a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, admite-se a mudança do nome ensejador de situação vexatória ou degradação social ao indivíduo, como ocorre com aqueles cujos prenomes são notoriamente enquadrados como pertencentes ao gênero masculino ou ao gênero feminino, mas que possuem aparência física e fenótipo comportamental em total desconformidade com o disposto no ato registral.


3. Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas.


4. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade.


5. Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade - ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral - deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional.
6. Nessa compreensão, o STJ, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, já vinha permitindo a alteração do nome e do sexo/gênero no registro civil (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009).


7. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças.


8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais).


9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).


10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico.


11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade.


12. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.


13. Recurso especial provido a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.

 

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Nesse primeiro momento, parece importante compreender os conceitos jurídicos de sexo, identidade de gênero e orientação sexual, além de distinguir a transexualidade das demais dissidências existenciais de gênero.

 

Sobre o tema, Maria Berenice Dias, uma dos maiores expoentes sobre o direito de minorais, assim elucida:

 

(...) sexo diz com características morfológicas e biológicas, identificadas, externamente, pelos órgãos sexuais femininos e masculinos. O sexo não determina a orientação sexual e nem a identidade de gênero. Apenas serve de referência para o seu reconhecimento.

 

Gênero é uma construção social que atribui uma série de características para diferenciar homens e mulheres em razão de seu sexo biológico. Homens usam azul, jogam futebol, não choram e precisam ser competitivos e fortes. A eles está mais do que liberado - é até incentivado - o pleno exercício da sexualidade. Mulheres se vestem de cor de rosa, precisam ser frágeis e dóceis. Seus qualificativos estão ligados à abstinência sexual e a virgindade ainda é sinônimo de pureza e castidade.

 

Identidade de gênero está ligada ao gênero com o qual a pessoa se reconhece: como homem, como mulher, como ambos ou como nenhum. A identidade de gênero independe dos órgãos genitais e de qualquer outra característica anatômica, já que a anatomia não define gênero.

 

A orientação sexual indica o impulso sexual de cada indivíduo, aponta para a forma como ele vai canalizar sua sexualidade. A orientação sexual tem como referência o gênero pelo qual a pessoa sente atração, desejo afetivo e sexual. Quando for por pessoa que tem identidade de gênero diverso do seu, se diz que a pessoa é heterossexual. Se for por alguém do mesmo gênero, a pessoa é rotulada de homossexual. E, se a atração for por pessoas de ambos os gêneros, a pessoa é classificada como bissexual.

 

Não se deve falar em opção sexual, mas em orientação sexual, expressão que significa que o desejo sexual está em direção a determinado gênero. Como afirma Adriana Maluf, a orientação sexual - quer para heterossexuais, quer para homossexuais - não parece ser algo que uma pessoa escolha. A única escolha que o homossexual pode tomar é a de viver a sua vida de acordo com sua verdadeira natureza, ou de acordo com o que a sociedade espera dele. Descrever a homossexualidade como um simples caso de escolha é ignorar a dor e a confusão por que passam tantos homossexuais quando descobrem sua orientação sexual. Seria absurdo pensar que esses indivíduos escolheram deliberadamente algo que os deixaria expostos à rejeição por parte da família, dos amigos e da sociedade.

 

(...) Transexuais são indivíduos que, via de regra, desde tenra idade, não aceitam o seu gênero. Sentem-se em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo biológico e, de um modo geral, buscam todas as formas de adequar-se a seu sexo psicológico.

 

travestis são pessoas que, independente de orientação sexual, aceitam o seu sexo biológico, mas se vestem, assumem e se identificam como do gênero oposto. Não sentem repulsa por sua genitália, como ocorre com os transexuais. Por isso não perseguem a redesignação cirúrgica dos órgãos sexuais, até porque encontram gratificação sexual com o seu sexo.

 

A transidentidade abrange uma série de opções em que a pessoa sente, adota - temporária ou permanentemente - o comportamento e os atributos do gênero em contradição com o seu sexo genital. Como explica João Nery, em alguns casos, o travestismo é ocasional. Em outros, a pessoa pode viver alternadamente com duas identidades sociais, masculina e feminina. Pode, ou assumir uma posição intermediária, o gênero não marcado, ou viver plenamente no tipo de sexo oposto. Somente aconteceria o amplo reconhecimento das identidades sexuais - e a liberdade sexual seria mais efetiva - se fosse abolido o sistema binário que caracteriza as atuais relações de poder entre os gêneros, isto é, se fossem rejeitadas as representações sobre o sexo que são impostas como naturais pela ideologia dominante e que impõe deveres de comportamento aos interessados.

 

Transgêneros são indivíduos que, independente da orientação sexual, ultrapassam as fronteiras do gênero esperado e construído culturalmente para um e para outro sexo. Mesclam nas suas formas plurais de feminilidade ou masculinidade, traços, sentimentos, comportamentos e vivências que vão além das questões de gênero como, no geral, são tratadas.

 

A expressão transgênero, nos países de língua inglesa, identifica transexuais. No Brasil, por um tempo se pretendeu englobar travestis e transexuais neste vocábulo. Depois se tentou manter as três expressões, o que acabou se refletindo na sigla LGBTTT. No entanto, houve profundo desconforto tanto de travestis como de transexuais que não gostaram de perder suas identidades. Por isso, a expressão vem sendo abandonada e com isso afastada a multiplicidade do uso da letra "T".

 

A expressão trans acabou sendo utilizada como um grande guarda-chuva, que alberga diferentes identidades: transexual, travesti e transgênero, para quem ainda usa essa expressão. Por ocasião do Congenid - Congresso Internacional sobre Identidad de Género y Derechos Humanos, realizado em Barcelona, no ano de 2010, foi aprovada a utilização apena da sigla trans* ou da letra T*, ambas com asteriscos, para abranger toda as manifestações de transgeneridade: qualquer pessoa cuja identidade de gênero não coincide de modo exclusivo e permanente com o sexo designado quando do nascimento. Quando se diz que homens necessariamente nascem com pênis e mulheres com vagina, estimula-se a discriminação contra aqueles que, apesar de terem nascido com genitália masculina, não se reconhecem como homens e os que nasceram com órgãos sexuais femininos, mas não se identificam como mulheres. Intersexuais ou intersexo - conhecidos como hermafroditas ou andrógenos - são pessoas que possuem genitais ambíguos, com características de ambos os sexos, e que podem se reconhecer como homem ou como mulher, independente de característica física. O gênero não está necessariamente ligado à anatomia. Daí a inclusão levada a efeito, e já adotada em inúmeros países, deste segmento na sigla LGBTI. (...) (Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6. ed. reformulada. São Paulo: RT, 2014, p. 42-44)

 

A amplitude da significação da expressão sexo autoriza sua classificação nas seguintes modalidades:

 

(i) o sexo cromossômico (ou genético);

(ii) o sexo endócrino (ou gonádico ou gonadal);

(iii) o sexo morfológico (ou anatômico ou fenótipo ou aparente);

(iv) o sexo psicológico (ou psicossocial); e

(v) o sexo jurídico (legal ou civil).

 

O sexo cromossômico é definido pelo par de cromossomos sexuais apresentado pelo indivíduo ("XY" para indivíduo do sexo masculino e "XX" para indivíduo do sexo feminino). O sexo endócrino é determinado a partir do exame das glândulas reprodutoras (ovários ou testículos). O sexo morfológico refere-se à forma ou aparência de uma pessoa no seu aspecto genital (pênis, escroto e testículos para sexo masculino; vagina e útero para sexo feminino). Em relação ao sexo psicológico ou psicossocial, analisa-se a concepção de gênero da pessoa sobre si mesma, em uma perspectiva sociocultural. Por fim, o sexo jurídico diz respeito àquele que consta no registro civil de nascimento, sendo definido o sexo do indivíduo em razão de sua vida civil (relações na sociedade).

 

A identidade de gênero, por sua vez, "está atrelada ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino), independentemente de sua constituição física ou genética" , sobressaindo o entendimento atual de que "não existe determinismo biológico quando se fala da construção da identidade sexual, vez que esta se molda além do plano do meramente físico ou anatômico, sendo sexo e gênero elementos distintos, havendo este último de prevalecer sobre aquele no que se refere à formação da identidade da pessoa" (CUNHA Leandro Reinaldo. Identidade e redesignação de gênero : aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 19).

 

Em uma abordagem biomédica da transexualidade, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (também chamado de DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria, utiliza a expressão disforia de gênero para definir o descontentamento afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero designado no nascimento. Consoante o referido manual, a disforia de gênero refere-se ao sofrimento que pode acompanhar a percepção de incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa (p. 451).

 

O transexual deseja viver e ser aceito como pessoa do gênero oposto. Acredita ter nascido "com o corpo trocado", considerando-o, muitas vezes, disforme ou monstruoso, razão pela qual manifesta imperativo desejo de "adequação do sexo", mediante o uso de vestimentas do sexo oposto e a realização de terapia hormonal e/ou de cirurgia de transgenitalização. A forte rejeição do fenótipo sexual apresentado pode levar o transexual à automutilação ou ao suicídio.

 

Após conclusão de batalha judicial travada em ação civil pública, o Ministério da Saúde, em 2008, instituiu o "Processo Transexualizador" no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS (Portaria MS 1.707/2008).

 

Em 19 de novembro de 2013, sobreveio a Portaria MS 2.803, que redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador no SUS, enumerando, entre outros, os seguintes procedimentos cirúrgicos considerados de alta complexidade: redesignação sexual no sexo masculino (orquiectomia bilateral com amputação do pênis e neocolpovulvoplastia, isto é, construção de neovagina), tireoplastia (cirurgia de redução do Pomo de Adão com vistas à feminilização da voz e/ou alongamento das cordas vocais no processo transexualizador), mastectomia simples bilateral em usuária sob processo transexualizador (ressecção de ambas as mamas com reposicionamento do complexo aréolo mamilar), histerectomia c/ anexectomia bilateral e colpectomia em usuária sob processo transexualizador (ressecção do útero e ovários, com retirada parcial ou total do segmento da vagina).

 

Nessa compreensão, o STJ, ao julgar casos nos quais realizada a cirurgia de transgenitalização, adotou orientação jurisprudencial no sentido de ser possível a alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais no registro civil: (...)

 

A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. - A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana, cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. - Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.

 

Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. 

 

Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna.

 

Na Espanha, desde 2007, os transexuais podem pleitear a retificação do nome e do sexo sem necessidade de cirurgia de transgenitalização, bastando a existência de laudo médico e psicológico atestando a disforia de gênero.

 

Em Portugal, no ano de 2011, criou-se o procedimento administrativo de mudança de sexo e de nome próprio no registro civil, exigindo-se tão somente um diagnóstico psiquiátrico elaborado por equipe multidisciplinar de sexologia clínica, não se fazendo qualquer alusão à necessidade de cirurgia.

 

O Governo da Noruega, neste ano, apresentou um projeto de lei para mudança de gênero no registro de nascimento sem a exigência de cirurgia, preceituando que "qualquer pessoa que considere que o gênero difere do que foi designado tem o direito de mudá-lo com base em sua própria percepção" .

 

A Argentina tem uma das lei de identidade de gênero mais avançadas do mundo, que autoriza qualquer pessoa a retificar seu nome, sexo e imagem nos documentos públicos, diretamente no "Registro Nacional de Pessoas", sem a necessidade de diagnósticos médicos/psiquiátricos ou da realização de cirurgia de redesignação sexual.

 

O direito à identidade integra o conteúdo mínimo dos direitos de personalidade. O referido direito está umbilicalmente vinculado ao direito de liberdade de desenvolvimento e expressão da própria personalidade, (...).

 

Por sua vez, o direito ao reconhecimento perante a lei é um dos princípios enumerados na Carta de Yogyakarta, cidade da Indonésia (...)

 

A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade. Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero. 

 

O direito à igualdade não autoriza, portanto, que o Estado perpetre discriminações odiosas entre as pessoas, notadamente quando o discrímen erigido sequer é algo a ser aferível na grande maioria das relações sociais, pois certo que a genitália humana faz parte da intimidade de cada um.

 

Por seu turno, o direito fundamental à saúde manifesta-se na necessidade de garantia do bem-estar biopsicofísico da pessoa transexual cuja identidade de gênero for devidamente retratada no assentamento civil.

 

Ademais, como dito acima, um procedimento cirúrgico (que envolve riscos demasiados) não pode figurar como pressuposto para o exercício de direito voltado ao pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Por fim, cumpre dar o devido enfoque ao direito fundamental à felicidade, apontado no inciso IV do artigo 3º da Constituição da República

 

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.

 

 

 

 

Direito Ao Alcance De Todos